terça-feira, 25 de maio de 2010

10. A GARANTIA DE SISTEMA NORMATIVOS: PUNIÇÃO E RECOMPENSA

“A PROPÓSITO DOS FUNDAMENTOS DE UMA ÉTICA DA RECOMPENSA”

Dr. Luis Alberto Peluso

RESUMO

As mais diferentes posições que se fazem presentes na moderna discussão sobre teoria do Direito têm partido da pressuposição que todo sistema jurídico se constitui de regras de comportamento que têm o sistema punitivo como garantia da subserviência dos concernidos. Assim, a garantia de todo conjunto de normas e institutos jurídicos é, em última instância, um sistema de controle baseado na imposição de punição, pena, restrição ou sofrimento sobre o autor do ato infracional.
Entretanto, as objeções mais graves produzidas pelos críticos dos sistemas jurídicos, enquanto conjuntos de normas e instrumentos de controle do comportamento das pessoas, têm sido elaboradas a partir da denúncia da insustentabilidade de uma teoria do Direito como instrumento de controle social através do estabelecimento de um sistema punitivo e da violência gerada pelo próprio sistema de administração da justiça na medida em que controla, através da punição, o comportamento social. Isto quer dizer que o discurso do Direito Penal é irracional, bem como, o aparelho da Justiça punitiva é hoje acusado de gerar mais violência do que aquela que consegue eliminar.
Este texto tem por objetivo oferecer uma interpretação do contexto dos argumentos críticos do atual sistema de controle do comportamento coletivo das pessoas através da punição dos atos que infringem as leis estabelecidas e procura examinar os fundamentos de uma teoria da recompensa que forneceria subsídios para um sistema de garantia premial. Portanto, muito menos que examinar os argumentos das teorias críticas do Direito Penal, aqui se pretende apresentar uma interpretação do quadro geral dessas teorias. Uma segunda parte deste texto concerne à apresentação de alguns princípios e algumas teses sobre os fundamentos de uma teoria da recompensa como instrumento de garantia do sistema de controle do comportamento dos agentes.
Há evidências que os utilitaristas clássicos, com especial referência a Jeremy Bentham, pensaram na recompensa, compensação ou prêmio como um instrumento complementar ao sistema punitivo. Nesse sentido, punição e recompensa seriam faces de uma mesma moeda. Aqui se pretende examinar os fundamentos de uma teoria da recompensa construída a partir do pressuposto que um sistema premial pode ser instrumento de garantia da prática do bem.




INTRODUÇÃO


“The business of government is to promote the
happiness of the society, by punishing and rewarding”.
(Bentham, J. “The Principles of Morals and Legislation”,
London, 1789, Chap. VII, p. 977)




As mais diferentes posições que se fazem presentes na moderna discussão sobre teoria do Direito têm partido da pressuposição que todo sistema jurídico se constitui de regras de comportamento que têm o sistema punitivo como garantia da subserviência dos concernidos. Assim, a garantia de todo conjunto de normas e institutos jurídicos é, em última instância, um sistema de controle baseado na imposição de punição, pena, restrição ou sofrimento sobre o autor do ato infracional.
Entretanto, as objeções mais graves produzidas pelos críticos dos sistemas jurídicos, enquanto conjuntos de normas e instrumentos de controle do comportamento das pessoas, têm sido elaboradas a partir da denúncia da insustentabilidade de uma teoria do Direito como instrumento de controle social através do estabelecimento de um sistema punitivo e da violência gerada pelo próprio sistema de administração da justiça na medida em que controla, através da punição, o comportamento social. Isso quer dizer que o discurso do Direito Penal é irracional, bem como, o aparelho da Justiça punitiva é hoje acusado de gerar mais violência do que aquela que consegue eliminar.
Este texto tem por objetivo oferecer uma interpretação do contexto dos argumentos críticos do atual sistema de controle jurídico através da punição dos atos que infringem as leis estabelecidas e procura examinar os fundamentos de uma teoria da recompensa que forneceria subsídios para uma teoria do Direito baseada em um sistema de garantia premial. Portanto, muito menos que examinar os argumentos das teorias críticas do Direito Penal, aqui se pretende apresentar uma interpretação do quadro geral dessas teorias. Uma segunda parte deste texto concerne à apresentação de alguns princípios e algumas teses sobre os fundamentos de uma teoria da recompensa como instrumento de garantia do sistema de controle do comportamento dos agentes.
Há evidências que os utilitaristas clássicos, com especial referência a Jeremy Bentham, propositadamente lembrado na epígrafe deste texto, pensaram na recompensa, compensação ou prêmio como um instrumento complementar ao sistema punitivo. Nesse sentido, punição e recompensa seriam faces de uma mesma moeda. Aqui se pretende examinar os fundamentos de uma teoria da recompensa construída a partir do pressuposto que um sistema premial pode ser instrumento de garantia da prática do bem.
A metodologia empregada no desenvolvimento deste trabalho concerne exclusivamente à pesquisa documental e bibliográfica com o objetivo de identificar as posições e os argumentos produzidos no debate sobre os limites das teorias éticas e do direito que interpretam a punição como instrumento de garantia do controle social. A preocupação central aqui consolidada concerne à tentativa de construir os fundamentos de uma teoria ética da recompensa. Aqui serão reunidos os argumentos para demonstrar que a recompensa pode ser o instrumento fundamental na determinação do comportamento dos agentes e, nesse sentido, pode ser, em simetria com a punição, a garantia de todo um sistema normativo do comportamento humano.

Parte I – O contexto das modernas teorias críticas da punição

Parece razoável afirmar que o moderno debate sobre o sentido da garantia do sistema normativo das condutas coletivas tem sido marcado pela produção de teorias que, de uma forma geral, apontam a existência de uma crise nas tentativas de produzir um discurso racional para a justificação da punição como instrumento de controle social. Grande parte da produção literária sobre o tema está voltada para a crítica das teorias que têm interpretado o Direito como um conjunto de formas de resolução de conflitos entre os seres humanos através do controle do comportamento social por meio de medidas punitivas. Esse parece ser o ingrediente novo nesse debate.
Entretanto, as teorias hegemônicas têm sido aquelas que insistem na afirmação do caráter inescapável da punição como único recurso de que se dispõe para fazer obedecer às leis. Assim, há fortes evidências que se vive, no mundo das teorias penais, a crise do paradigma do Estado Social e Democrático de Direito, o qual interpreta que a Justiça somente pode ser obtida em um sistema de controle social apoiado no garantismo e no Direito Penal mínimo. A expressão garantismo ficou consagrada na literatura jurídico-penal como expressiva da interpretação que o controle social penal exercido pelo Direito deveria ser racional, previsível e transparente. Fica, portanto, assegurada a necessidade de formalização dos conflitos como um dos recursos que o Direito deveria oferecer na realização de sua tarefa de garantir os direitos individuais contra as possíveis arbitrariedades do Estado. A idéia de Direito Penal mínimo implica na interpretação que a intervenção penal deve se limitar à proteção de bens jurídicos vitais do indivíduo e à organização e à proteção da sociedade.
Esse paradigma de interpretação do significado do Direito, com especial referência ao Direito Penal, parece, contudo, encontrar-se hoje em crise. Novas teorias parecem consolidar-se na tarefa de substituir as idéias de garantismo e Direito Penal mínimo. Assim, toma corpo a teoria que destaca o caráter simbólico da atividade punitiva do Estado. Isto é, a intervenção penal não é mais tida como forma de tutela de bens jurídicos fundamentais, como pleiteado pela teoria garantista, mas como instrumento de impacto e controle do sentimento público de insegurança. Por outro lado, a teoria do Direito Penal mínimo, com sua subsequente defesa da descriminalização de certos procedimentos e com a busca de formas alternativas de expressão do rigor punitivo, vem sendo substituída pela teoria do equacionamento transacional ou conciliatório de conflitos fora do processo formal de exercício da tutela jurisdicional do Estado. Essa forma de resolver conflitos que privilegia a atividade de transigir sobre direitos definidos e a conciliação forçada das partes litigantes implica uma maneira de entender o Direito que resulta na imprecisão tópica na descrição das condutas proibidas ou ordenadas, na tipologia criminal imprecisa e vaga e na depreciação do processo formal de exercício da tutela dos direitos numa situação de conflito. Assim, as teorias que apontam o caráter simbólico da pena, as teorias que consideram os direitos como negociáveis e as que destacam o caráter transigente do exercício da tutela jurisdicional parecem se constituir na nova roupagem com que se traveste a teoria que interpreta o Direito como expressivo dos movimentos de preservação da Lei e da Ordem.
Se este diagnóstico estiver minimamente correto, então os movimentos especulativos hoje em dia prevalecentes na teoria do Direito Penal indicam o recrudescimento da teoria que interpreta o Direito como resultado da preservação da Lei e da Ordem, em detrimento das teorias que interpretam o Direito como instrumento de construção daquilo que se convencionou chamar de Estado Social e Democrático. Portanto, o panorama do moderno debate sobre as teorias do Direito é aqui reconstruído a partir do confronto entre duas perspectivas. De um lado teorias que enfatizam categorias, tais como, punição como instrumento de controle, negociabilidade dos direitos e informalidade da tutela jurisdicional. De outro lado teorias que interpretam o Direito a partir de categorias tais como racionalidade do discurso jurídico, previsibilidade e transparência nos instrumentos de controle social, descriminalização e proteção da sociedade contra o Estado. No que concerne particularmente à teoria da punição, as posições se dividem em defensores da função simbólica, ou imaginária da punição e defensores da função instrumental ou racional da pena. Para os primeiros, as punições são instrumentos de eficácia garantida no controle social, uma vez que têm um significado simbólico que pode ser traduzido na idéia que todos têm a impressão que se tem mais segurança quanto mais rigoroso seja o sistema punitivo. Para os segundos, as punições somente são racionalmente justificáveis se for possível demonstrar que os resultados obtidos com sua utilização, de fato, maximizam a tutela eficaz dos bens jurídicos fundamentais para a convivência social. Para uns o papel da pena é dar aos cidadãos a sensação de proteção. Para outros, as penas somente tem sentido como instrumentos da tutela do Estado de Direito.
Contudo, novos argumentos estão sendo gestados e espera-se uma nova escalada das posições críticas da utilização do Direito Penal como instrumento exclusivo de controle da criminalidade. É nesse contexto de contestação de certo uso do Direito Penal que se situa o presente trabalho.
Entretanto, aqui se pretende argumentar que, na construção da posição crítica do Direito Penal, tem sido negligenciada a análise do caráter instrumental benéfico, como medida de estímulo para a ação, que a recompensa, ou prêmio, pode ter. Em contraposição a uma interpretação meramente penal do Direito, é possível fundamentar todo o sistema de estatutos e institutos, que constituem o Direito, em uma interpretação simétrica entre a função penal, ou punitiva, e a função premial, ou recompensatória, dos seus instrumentos de garantia. O Direito, nessa perspectiva, não se utiliza somente de instrumentos de controle negativo, inibindo certos cursos de ação, na medida em que castiga, pune ou impinge sofrimento àquele que infringe a Lei. Mas, é, ainda, garantido por instrumentos de controle positivo, que podem incentivar ou estimular as pessoas a agirem, ou deixarem de agir, de uma certa forma, posto que, ao assim fazerem, tornam-se merecedoras de um prêmio, ou recompensa, que o Direito Premial faz acrescer aos resultados naturais e sociais do ato praticado.


PARTE II – Fundamentos da teoria utilitarista da punição


As conclusões da moderna discussão sobre a teoria das penas legais têm traduzido o esforço de demonstrar que o sistema punitivo do Direito Penal, ademais da suposta perversidade do discurso jurídico-penal (ZAFFARONI 1991:29) reintroduz a violência nas relações sociais. Isto é, no esforço de eliminar a violência civil existente nas relações conflituosas que ocorrem na vida da sociedade, o controle social exercido através do Direito Penal mantém um sistema de violência. Substitui-se a violência civil pela violência penal.
O desenvolvimento deste tema vem sendo sugerido em uma série de obras que têm sido produzidas na literatura recente sobre o Direito Penal, a Criminologia, a Sociologia Jurídica, a Filosofia do Direito e a Ética. Ainda que modernamente, grande parte das obras sobre o tema do controle social punitivo, da violência como instrumento de determinação do comportamento legal, da teoria das penas, da teoria das punições, da vitimologia e da criminologia tenha sido produzida por sociólogos e juristas, contudo, esse parece ser um tema típico do panorama jusfilosófico do final do século XVIII e início do século XIX.
Nos anos entre 1750 e 1850 foram produzidas diversas obras sobre as questões que são hoje identificadas como parte da produção da crítica do Direito Penal. Essas obras foram escritas a partir de pressupostos filosóficos explicitamente assumidos por seus autores como tais. O que isto parece indicar é que a crítica do Direito Penal não é um fenômeno recente; ela vem se processando desde o final do século XVIII quando ocorre a virada iluminista no mundo das teorias jurídicas e se inicia a revolução do Direito rumo à implementação do princípio da racionalidade moderna no mundo dos institutos jurídicos. Claude Adrien Helvetius, Cesare Beccaria, Jeremy Bentham, Adam Smith, John Stuart Mill, dentre outros, denunciaram o sistema punitivo e o emprego da violência como instrumento de controle social em sua época. Também eles discutiram criticamente os diferentes sistema punitivos e elaboraram teorias sobre o controle social do comportamento dos cidadãos pensando em formas de evitar os pontos que hoje se tornaram o fulcro do debate sobre a garantia de sistemas de condutas através de mecanismos punitivos. Entretanto, o fizeram a partir de determinadas posições filosóficas explicitamente declaradas. Tudo indica que fizeram a discussão a partir de teorias cujas formulações se utilizavam de categorias e linguagem filosóficas.
Aqui se pretende resgatar alguns tópicos da contribuição desses pensadores clássicos do pensamento moderno para o tema que investiga sobre os instrumentos que podem ser usados no processo de garantir o cumprimento das regras socialmente construídas. A filosofia contemporânea tem realizado a sua inserção nesse debate através de uma outra vertente. Filósofos e Jusfilósofos contemporâneos têm participado desse debate através da discussão da teoria da justiça. Entretanto, todos parecem presumir que a questão da justiça concerne aos fundamentos da eqüidade na repartição do bem estar que as sociedades modernas são capazes de produzir. Pouco tem sido dito sobre os critérios da repartição dos ônus produzidos pelos instrumentos de garantia da ordem, dos critérios para distribuir punição e sofrimento que necessariamente se agrega à vida em sociedade toda vez que se estabelecem sistemas punitivos como forma de controlar o comportamento das pessoas. Pouco se tem discutido sobre sistemas de controle social cujos resultados sejam alternativos à agregação de violência ao ‘quantum’ produzido pela atividade infracional. Quase nada se fala daquilo que os clássicos da modernidade já intitularam a racionalidade do sistema premial.
Dentre os autores que se destacaram por sua contribuição sobre as relações entre punição e recompensa como instrumentos de garantia do controle do comportamento coletivo destaca-se Jeremy Bentham (1748-1832). Ele parece ter sido o primeiro a encaminhar a discussão da questão da justificação utilitarista das punições legais. Isto é, partindo da interpretação que o utilitarismo pretende ser um projeto ético que privilegia a busca do prazer e a fuga da dor, investigou como é que esse mesmo projeto justifica que as leis necessitem ser garantidas pela punição e, portanto, pelo sofrimento dos infratores. Posto de outra forma, sendo o sofrimento um mal, em que sentido a punição pode ser um bem?
Na formulação clássica, com especial referência às idéias de J. Bentham, a teoria utilitarista das penas legais apresenta uma resposta para esta questão. Partindo da interpretação que as punições têm o caráter de 'medidas de desencorajamento', o utilitarismo fornece um conjunto de critérios plausíveis para a identificação da menor punição possível.
Na visão utilitarista clássica, as punições são, juntamente com as recompensas, os únicos instrumentos justificáveis racionalmente que podem exercer alguma influência na determinação da forma de conduta das pessoas, posto que alteram, de fato, as conseqüências naturais das regras de conduta, agregando-lhes prazer ou sofrimento. Elas são, portanto, os instrumentos de garantia da obediência às leis. As leis são sempre postas para um fim, ou uma finalidade. A finalidade ultima ou geral de uma lei não pode ser outra senão o bem estar da comunidade. O bem da comunidade é a soma dos bens particulares, isto é, dos diversos indivíduos da qual ela se constitui. Desta forma o aumento do bem de cada um dos indivíduos implica no aumento do bem da comunidade como um todo. Isto decorreria da aplicação do principio de utilidade associado com o principio da simpatia dos interesses. Portanto, uma lei será tão mais propriamente uma lei na medida em que ela seja capaz de ser uma expressão do principio de utilidade .
O projeto utilitarista é, contudo, fortemente fundamentado no individualismo. Nesse sentido nenhuma atitude humana pode ser censurada ou aprovada sem se postular o principio de cada individuo buscar seu próprio prazer, ou utilidade. A aplicação desse principio pode conduzir à conclusão que o mais sórdido prazer que o mais temível dos malfeitores consegue obter de seu crime não haveria de ser reprovado se esse individuo existisse sozinho, ou se sua ação não afetasse a felicidade dos demais.
A teoria utilitarista da lei assegura que a finalidade da ordem jurídica é contribuir para a felicidade da comunidade e impedir a pratica de atos que impliquem na diminuição dessa felicidade. Agregando punição e recompensa aos resultados das normas de condutas, o legislador pode influenciar as ações e promover a felicidade dos seres humanos. A ação que a lei influencia pode ser a do próprio legislador ou a de outros indivíduos. O legislador pode promover a felicidade de outros indivíduos de duas maneiras. Primeiramente pode influenciar as ações criando uma situação em que a abstenção da prática de determinada ação haveria de produzir sério inconveniente ao indivíduo. Em segundo lugar, pode influenciar as ações criando uma situação em que a execução de determinada ação haveria de produzir conseqüências vantajosas para o individuo.
Dessa maneira, através dos métodos punitivos e premial, o legislador causa ou pretende causar a pratica ou a abstenção de uma ação. Nesse sentido, o legislador cria o dever. E os deveres, conforme o caso, podem ser considerados como dever de abstenção, ou dever de execução. Isto é, os deveres podem ser positivos ou negativos .
Os objetos sobre os quais incidem as ações podem ser coisas ou pessoas. Desta forma, os deveres estabelecidos pelo legislador como uma forma de influenciar as ações resulta por conferir, a um individuo, poder sobre coisas e pessoas. Na medida em que a lei resulta na abstenção de certas ações de outras pessoas, as quais poderiam resultar na diminuição da vantagem que um indivíduo colheria da utilização de certa coisa, ela confere poder a esse individuo sobre essa coisa. Assim também, na medida em que a lei não proíbe o individuo de praticar aquelas ações sobre a coisa, que haveriam de resultar em sua felicidade, ela está conferindo poder ao individuo sobre a coisa. Assim, o poder sobre as coisas é conferido pelo legislador na medida em que ele impõe, sobre as pessoas, o dever de abstinência. A lei influenciando as ações não pode, por razões óbvias, deixar de influenciar as pessoas. Portanto, somente no sentido de término é que podemos dizer que as leis têm por objetos as coisas. Nestes termos, o poder sobre uma coisa, haveria de significar sempre o direito sobre as ações de pessoas .
A lei pode conferir ao individuo o poder de tal forma que ele é deixado livre para exercê-lo ou não, de acordo com a contribuição que a ação em pauta venha significar para sua vantagem. Contudo, a lei pode conferir o poder associando-o com o dever, isto é, o individuo é compelido a exercer o poder em proveito de uma outra parte. Neste último caso, Bentham entende que se tem o ingrediente da 'responsabilidade' .(12)
Quando os atos que um individuo é livre para praticar podem envolver os interesses de outras pessoas, esse indivíduo exerce um poder sobre essas pessoas. Nesse caso, na medida em que o indivíduo possui o poder em questão, ele desfruta da isenção do dever de abster-se de praticar os atos envolvidos pelo poder em questão. Desta forma, a lei pode conferir diferentes modalidades de poder sobre as pessoas.
A lei emite comandos e, ao assim fazê-lo, ela cria deveres, ou o que seria a mesma coisa dita com palavras diferentes, ela cria obrigações. Não existe lei sem a criação de deveres. Esse seria um elemento característico de todo artigo de lei.
Na visão do utilitarismo, o legislador deveria dispor de um quadro geral que permitisse interpretar todos os campos da ação humana. Ele deveria utilizar um método que permitisse construir as leis com regularidade e consistência. Isto certamente resultaria em uma "Jurisprudência Definida" e tão transparente que não haveria obscuridade na interpretação da lei. Num sistema legal produzido por um legislador desse tipo, as pessoas precisariam apenas abrir o livro da lei e ler o que estaria disposto sobre todas as esferas da ação humana. Ali se encontrariam as leis prescrevendo as ações que deveriam ser executadas para seu interesse próprio, de seus visinhos e do público em geral. As leis descreveriam ainda os atos que um indivíduo tem o direito de praticar, e os atos que ele tem o direito que os outros executem em seu favor. Uma "Jurisprudência Definida" haveria de deixar claro aos indivíduos tudo o que eles deveriam esperar e temer em relação às leis. A lei seria então o repositório de todo o sistema de obrigações contidas, de fato, nas ordens que elas expressam, ou contidas de forma potencial nos poderes que elas conferem.
A forma como o utilitarismo concebe a lei parece estar apoiada sobre uma interpretação política das relações entre os indivíduos. A lei expressa poder das pessoas, umas sobre as outras. Ela expressa a vontade de um soberano, sendo, portanto, um instrumento de governo.
Essa teoria coloca, contudo, a questão da justificação da força da lei. Dentro de um projeto de explicação das ações humanas a partir dos princípios de utilidade, como justificar racionalmente o poder de umas pessoas sobre as outras? Isto é, como justificar o fundamento, ou a força da lei? Quais as razões que compelem os indivíduos a obedecerem às leis?
Bentham acreditava que a força da lei consistia nos motivos em que ela se apóia para ser capaz de produzir os efeitos para os quais é forjada. Os motivos das leis consistem na expectativa da quantidade de prazer e de sofrimento que estão conectados, numa relação de causa e efeito, com certas ações das quais eles são considerados os motivos. Portanto, a força que impulsiona os indivíduos a obedecerem às leis é de dois tipos. Primeiramente existem os motivos que estão associados ao prazer e atraem as pessoas para certas práticas previstas na lei porque o resultado das ações do agente é de seu interesse. Em segundo lugar, existem motivos que se associam ao sofrimento daqueles que praticam determinadas ações descritas na lei. Quando uma lei tem motivos do primeiro tipo se diz que ela oferece uma recompensa. No caso de leis cujos motivos são do segundo tipo, se diz que elas produzem punições .
Bentham argumenta que suas conclusões encontram razões favoráveis na análise da própria estrutura dos dispositivos legais. Embora nem sempre se possa encontrar explicitamente declaradas nos textos das leis, contudo, as leis se compõem sempre de uma parte que prescreve um curso de ação e outra que descreve um motivo, isto é, uma recompensa ou uma punição. As leis possuem uma parte que é expressiva da vontade do legislador, e outra cuja finalidade é indicar o motivo que ele fornece para que se cumpra o seu desejo.
Bentham diz: "Nesse caso a lei pode ser dividida em duas partes: uma cuja finalidade e fazer você conhecer qual e a inclinação do legislador: a outra serve para dar ciência do motivo que o legislador lhe deu para você se adequar àquela inclinação: uma endereçada mais particularmente para o seu intelecto; a outra, para a sua vontade. A primeira dessas duas partes pode ser denominada diretiva: a outra, sancional ou incitativa" .
Bentham parece aceitar que, embora a lei não seja por sua própria natureza coerciva, os sistemas legais usam, tipicamente, de ameaças e da força para garantir obediência a suas normas. O problema que se põe então consiste em perguntar como tais práticas podem ser justificadas. Quais as justificativas para a coerção, pois que ela nos priva da possibilidade de agirmos por nossas próprias razões? Qual a justificativa para punições que podem privar as pessoas de seus bens, incluindo a própria vida?
Segundo David Lyons dois pressupostos gerais fornecem a base para a resposta a essas questões. Primeiramente é necessário partir da idéia que a lei é moralmente falível. Em segundo lugar, que os julgamentos morais são capazes de ser justificados. Se a lei é moralmente falível, podemos assumir que os usos legais da coerção são justificáveis. Geralmente se concorda que o uso da força e da coerção necessitam justificação. Se isto é verdade, cabe a pergunta pela defesa legal da coerção. Note-se que a própria idéia de que a coerção requer justificação assume que os julgamentos morais são capazes de ser justificados. De outra forma, não haveria objeções morais a coerção. Portanto, o que isto parece implicar é a preferência pela posição que favorece a justificabilidade das leis e das práticas consideradas necessárias à sua implementação, especialmente as providências de punição .
Os limites dessa discussão são suficientemente amplos para abranger uma série extensa de outras questões. Contudo, aqui não se pretende ir além de apontar algumas características gerais da teoria utilitarista da punição.
Um utilitarista acredita que a lei deve servir o interesse do povo. Se a punição pode ser justificada, o deve ser em tais termos.
Bentham afirma: "A arte da legislação tem em vista dois objetivos ou propósitos gerais: um direto e positivo, qual seja, contribuir para a felicidade da comunidade: o outro indireto ou negativo, evitar que se faça qualquer coisa que possa resultar na diminuição dessa felicidade. Ela tem dois grandes instrumentos ou aparatos para capacitá-la a encaminhar o primeiro desses dois objetivos: 1. a coerção e 2. a recompensa" .
Portanto, o objetivo geral das leis é aumentar a felicidade global da coletividade. Conseqüentemente, elas visam a exclusão de todas as ações que resultem na diminuição da felicidade, isto é, de tudo o que é pernicioso. Nesse sentido, toda punição, na medida em que impõe sofrimento sobre as pessoas, é um ato pernicioso, sendo um mal em si mesma. Esta é a razão pela qual uma punição só pode ser justificada na medida em que evitar um mal maior .
A teoria das punições legais conforme apresentada por Bentham no "Principles of Morals and Legislation" consiste numa receita minuciosa do procedimento do legislador. Primeiramente indica os casos em que o legislador não deve infligir punição, sob pena de não ser fiel ao principio de economia de sofrimento. Isto é, quando não existir outro meio de se evitar o prejuízo, o legislador não deve punir por não valer a pena. Assim, evidentemente, o legislador não deve impingir punição quando não houver motivo para a punição, isto é, quando não houver prejuízo a evitar, ou o ato em seu conjunto não contribuir para a diminuição da felicidade da coletividade. Ainda, quando a punição somente puder ser ineficaz, isto é, quando a punição não for susceptível de evitar o prejuízo. Ainda, quando a punição for inútil ou excessivamente dispendiosa, isto é, o prejuízo produzido por ela for maior que o sofrimento coletivo que com ela se consegue evitar. Ainda, quando a punição for supérflua, isto é, quando o prejuízo for passível de ser evitado sem a punição, por si mesmo ou por um preço menor .
Mesmo no caso de se constatar que vale a pena, isto é, quando nenhuma das quatro situações acima descritas acontecer, o legislador deve manter em vista quatro objetivos, ao pretender estabelecer punições que evitem o prejuízo. Estes objetivos seriam: 1. Evitar, na medida do possível e na medida em que valer a pena, qualquer espécie de ofensa ou crime; isso significa combater todas as formas de ofensa ou crime; 2. Quando for inevitável que alguma pessoa cometa um crime, criar circunstância que a obriguem a cometer o crime menos pernicioso, isto é, induzir o criminoso a escolher sempre o crime menos prejudicial; 3. Induzir o criminoso à não produzir mais prejuízo do que o mínimo necessário para que ele atinja a sua finalidade, isto é, fazer com que o criminoso produza o mínimo de prejuízo possível para realizar uma ação criminosa cujos fins ele almeja; 4. Evitar o prejuízo da forma menos dispendiosa possível. Esses objetivos expressariam a aplicação pratica do principio da economia de punições .
Existem, ainda, seis normas que deveriam ser consideradas pelo legislador para o estabelecimento de um correto equilíbrio entre crimes e punições. Essas normas expressariam a combinação das quatro situações e dos objetivos acima descritos. Elas seriam: 1. "O valor, ou a gravidade da punição não deve ser em nenhum caso inferior ao que for suficiente para superar o valor do beneficio da ofensa ou crime". 2. "Quanto maior for o prejuízo derivado do crime, tanto maior será o preço que pode valer a pena pagar no caminho da punição". 3. "Quando houver dois crimes concorrentes, a punição estabelecida para o crime maior deve ser suficiente para induzir uma pessoa a preferir o menor". 4. "A punição deve ser regulada de tal forma para cada crime particular, que para cada nova parte ou etapa do prejuízo possa haver um motivo que dissuada o criminoso de produzí-la". 5. "A punição não deve, em caso algum, ser maior do que for necessário para que esta seja conforme as normas aqui indicadas". 6 "Para que a quantidade de punição realmente infligida a cada criminoso possa corresponder a quantidade que se deseja para criminosos semelhantes em geral, é necessário sempre levar em consideração as varias circunstâncias que influenciam a sensibilidade de cada um" .
Portanto, a teoria utilitarista das punições legais implica que a punição tem um custo, não somente por causa da imposição de penas em casos particulares e do aparato que é necessário para administrar um sistema de punições legais, mas também porque a determinação de penas para certos atos limita as decisões das pessoas e expõe cada individuo ao risco de punição. Dessa forma, a punição não pode ser justificada em bases utilitaristas, a menos que os benefícios que ela produz sejam maiores que os seus custos.
O enfoque utilitarista da punição, portanto, envolve um tipo de "análise de custo-benefício". As punições não podem ser justificadas simplesmente porque elas são merecidas, ou porque determinadas ações "clamam por vingança". As punições podem ser justificadas somente se suas conseqüências resultarem em custos previsíveis e identificáveis como capazes de produzir maiores benefícios do que qualquer decisão alternativa que pudesse ser tomada.
A teoria utilitarista das punições legais parte da interpretação que a punição é um recurso que produz o "desencorajamento" para a prática de certas ações. A determinação da punição de certos atos funciona como um instrumento para dissuadir as pessoas de agirem daquela forma. Isto é, ela tem o poder de desencorajamento. Quando um indivíduo é punido pela pratica de uma ação, ele pode ser persuadido a não repetí-la no futuro. A tarefa do legislador consiste em definir a punição em tal nível que os benefícios sejam maximizados, considerando-se os danos evitados como benefícios e contabilizando os custos. Nessa visão, a justificação da punição depende dos efeitos desencorajadores que podem ser razoávelmente previsíveis, somados a quaisquer outros benefícios e custos que possam razoávelmente ser esperados. Portanto, a justificação das punições é matéria que deve ser resolvida através de cálculos, onde se contabilizam os custos e os benefícios de certas ações. Nesses cálculos os custos são descritos em termos de sofrimento e os benefícios em termos de prazer ou minimização do sofrimento.
Para a interpretação utilitarista o que importa na análise de uma punição é saber se seus benefícios excedem os custos. O objetivo das punições não é o desencorajamento como tal, mas somente o uso das penas como instrumentos para a obtenção de maiores benefícios. As decisões referentes à identificação dos atos que serão sujeitos a punição não podem ser divorciadas, numa visão utilitarista, da justificação da própria punição. Não decidimos primeiramente quais os atos a serem proibidos e então estabelecemos as punições voltadas para sua erradicação. Desde que a punição tem custos, nem todo ato prejudicial ou perigoso pode ser sujeito de sanções penais de forma útil, porque os benefícios previsíveis algumas vezes excedem os seus custos. De acordo com a teoria utilitarista das punições legais, o fato de uma punição ser apropriada para o crime depende da possibilidade de justificação dessa punição através da forma puramente instrumental do cálculo de custo e beneficio.
Um dos pressupostos da teoria utilitarista da pena é a idéia que as punições podem mudar as ações das pessoas. Contudo, a reincidência demonstra que a punição pode fracassar em mudar a conduta daqueles já condenados. Isto não demonstra, contudo, que a punição não desencoraja de uma forma geral. Pois pode acontecer que muitos daqueles que nunca infringiram a lei sejam desencorajados pela ameaça de punição e que poderiam ter cometido crimes se não existisse o risco das penalidades legais. Isso significa que as punições têm um efeito desencorajador sobre as pessoas. A teoria das punições como desencorajamento permite ainda que se qualifique a ação inibidora que a ameaça de sofrimento pode exercer sobre as pessoas. Certamente esse efeito é menor nas pessoas movidas por violentas emoções.
Pode-se ainda afirmar que o aumento das penas não tem efeito proporcional sobre a inibição das ações. Em muitos casos o simples aumento da punição não é suficiente para aumentar, na mesma proporção, o grau de inibição.
Um indivíduo utilitarista não esta comprometido com a obediência às regras estabelecidas pelo legislador. Sua decisão sobre a obediência, ou não, às leis deve ser tomada em função daquilo que ele consegue prever que sejam os resultados da ação em análise. Isso significa que para o utilitarismo as punições não possuem um poder dissuasivo propriamente dito. É a analise de custo e beneficio da obediência, ou desobediência, à regra que é capaz de levar um individuo a ação. Donde se conclui, portanto, que não é propriamente a punição imposta pelo legislador soberano que se constitui na força da lei, mas o cálculo dos custos e dos benefícios que a lei pode produzir. E as operações desse cálculo são as mesmas, tanto para o legislador, ou juiz, e o agente.
As penas são males que devem recair sobre indivíduos por terem praticado ato prejudicial e, portanto, proibido pela lei. Sua finalidade é evitar que tal ato seja praticado no futuro. Não existe punição legal sem lei que a defina previamente. O direito de punir provem da lei. O direito de punir é criado pelo legislador, o qual justifica o castigo em função de sua utilidade, isto é, de sua necessidade. Dentro da perspectiva utilitarista, a lei é um instrumento pelo qual é possível tornar necessário o ato útil para o agente. O crime e a punição têm a mesma natureza, isto é, ambos são um mal. Porém possuem efeitos diametralmente opostos. O crime e um mal que causa sofrimento no individuo (ou indivíduos) contra o qual é cometido, e gera terror nos inocentes que se sentem passíveis de virem a sofrer os efeitos da repetição de tal ato criminoso. A pena e um mal, pois que causa sofrimento ao criminoso; mas é um bem nos seus efeitos, pois amedronta os homens perigosos .
A teoria utilitarista da punição está construída a partir da pressuposição que os princípios da moral são decorrentes de uma exigência da própria racionalidade humana. Eles seriam princípios necessários e suficientes para uma interpretação racional da ação humana. Assim, o que resulta da aplicação desses princípios é que constitui o conteúdo da categoria da Justiça.
Não existem decorrências da idéia de justiça que possam se sobrepor às exigências daquilo que se entende como uma teoria da ação resultante da própria racionalidade humana. O justo é o que resulta da aplicação dos princípios éticos. E os princípios éticos são resultantes da tentativa de se aplicar a racionalidade na análise da ação humana. O que justifica a punição, isto é, o que torna racional o direito do legislador punir, não é um ideal de justiça, mas o ideal da racionalidade humana. Punimos porque somos seres racionais e a razão nos permite avaliar os resultados de nossas ações em termos de sofrimento e prazer. Podemos entender que, ao se agregar um quantum de sofrimento às conseqüências de certos cursos de ação, podemos evitar o sofrimento maior decorrente do desrespeito generalizado à regra que proíbe tal ato. Entretanto, em todas as suas formas as punições são ações que resultam sempre em sofrimento e, portanto, são ações más. Seu uso racional demanda a identificação de um conjunto de regras econômicas.




Parte III - Princípios da teoria da recompensa

Para os utilitaristas clássicos existe uma simetria entre recompensa e prazer, da mesma forma como existe simetria entre punição e sofrimento. As punições podem ser infligidas em diversas formas e para todos os tipos de pessoas. Isto é, as ações de punição consistem em obrigar o infrator a produzir as ações que haverão de trazer como resultado o seu sofrimento. Contudo, o mesmo não ocorre com a recompensa. A recompensa consiste em dar ao premiado os meios ou recursos para que o agente possa escolher e praticar as ações que lhe trazem prazer. Portanto, recompensar consiste em criar para o agente a possibilidade da prática de uma escolha de um dentre vários cursos de ação possíveis numa determinada situação.
Bentham entendia que a recompensa, no sentido mais geral e extensivo da palavra consiste em uma certa quantidade de bem, a qual é conferida a alguém, com a intenção de beneficiá-lo(a) por isso, em função de um certo serviço que se supõe, ou se acredita, ter sido feito por ele(a).
Assim, a recompensa funciona como um motivo para a prática de ações úteis à sociedade, da mesma forma como a punição está associada à prevenção de ações as quais são consideradas como expressivas de uma tendência nociva aos interesses coletivos.
As recompensas dizem respeito a quase todas as transações entre os seres humanos e também o Estado, em face dos cidadãos, tem demandas por bens e serviços, da mesma forma como ocorre entre os indivíduos. É nesse sentido que o emprego da recompensa se torna um assunto para políticos e exige a atenção do legislador. (Bentham, J.; 1843, Book I, Chap. 1)
Há, ainda, simetria entre a punição e a recompensa enquanto instrumentos de controle do comportamento dos sujeitos. Uma ação que pode ser inibida ao se associar a ela uma punição, pode também ser evitada ao se fazer decorrer da abstenção de sua prática uma recompensa. A diferença que aqui se quer considerar relevante concerne ao caráter violento do controle negativo que se faz com a imposição do sistema penal. O controle social penal implica na subsunção da vontade do agente que, presumivelmente, não deseja a conseqüência punitiva do ato infracional que pratica. Ninguém sadio deseja sofrer punição.
O controle social positivo, exercido pelo sistema premial, deixaria ao sujeito a possibilidade de livremente receber, ou não receber, a recompensa pelo ato praticado. Nesse sentido, ele seria mais um instrumento para o exercício da cidadania, ou da competência dos sujeitos acionarem o aparelho social capaz de garantir a conseqüência premial do ato que praticam. A construção de um sistema premial está associada à elaboração de uma teoria do controle social que privilegie o caráter recompensatório que certas medidas jurídicas podem traduzir.
Tanto a punição como a recompensa adquirem sua maior força em um sistema combinado no qual o agente recebe uma recompensa pela prática da ação correta e sofre uma punição pela omissão da ação devida. Nesse sentido, pune-se sempre a omissão daquele que deveria agir de forma correta. Para que ocorra a penalização urge que exista um curso de ação prescrito pelo legislador como sendo o procedimento correto e devido naquela circunstância e haja uma pena atribuída àquele que omite a prática da ação devida. Ainda que a prática devida seja a omissão de uma certa prática. Nesse sentido, com a devida escusa do vernáculo, pune-se a omissão da omissão. Raciocínio semelhante aplica-se à recompensa. Recompensa-se sempre a ação daquele que pratica o curso de ação considerado correto ou justificado de acordo com argumentos de natureza moral.
Esse sistema, de punir e recompensar, combina o caráter atrativo e voluntário da recompensa com a força inibidora e a constante certeza da punição. O fato é que, devido à sua própria natureza, existe todo um conjunto de circunstâncias que conspiram contra a certeza da punição. Assim, os subterfúgios e escamoteamentos do autor, a falta de evidências dos atos cometidos, a falibilidade e os erros constantes dos magistrados. No que tange à recompensa, haverá certamente todo o empenho daquele que pratica o ato em demonstrar o seu mérito e o seu título ao prêmio. (Bentham, J.; 1843, Book I, Chap. 3)
A tarefa do legislador, ou político, consiste em unir, em cada indivíduo sujeito de uma ação, o seu interesse e o seu dever. A legislação perfeita é aquela que aponta que o dever de cada um consiste em seu próprio interesse. De uma forma geral, se tem pensado que essa tarefa pode ser conseguida quando se cria uma obrigação e se estabelece uma punição para sua inobservância. Contudo, se isso fosse suficiente, nenhum legislador fracassaria em sua missão. O fato é que a força da punição não é suficiente para determinar a vontade do agente no sentido da prática do curso de ação privilegiado pelo legislador como expressivo do interesse do próprio agente concernido. Somente o caráter voluntário e o atrativo da recompensa (do prazer e do lucro) provisionada pelo legislador à obediência da regra, associada à força que é peculiar da punição, pode determinar a união de interesse e dever.
Ao estabelecer um sistema combinado de recompensas para as ações e punições para as omissões, o legislador agrega sofrimento àquele já existente na sociedade em decorrência das conseqüências de todos os atos maléficos efetivamente praticados. Punição é sempre sofrimento agregado ao sofrimento já anteriormente produzido pelo próprio ato criminoso. A recompensa, por sua vez, não produz um excedente de bem-estar, felicidade, ou prazer, ao total daquele já existente na sociedade. Isto ocorre porque toda recompensa implica em dispêndio, em gasto, da parcela do quanto de bem-estar disponível no acervo dos resultados benéficos dos atos corretos praticados por todos os indivíduos que compõem a sociedade. A recompensa tem um custo social. Ela significa bem-estar que é atribuído a alguém às custas do acervo total de bem-estar disponível na sociedade. A recompensa de uma parte supõe o dispêndio de outra parte. Tudo o que é recebido por alguém a título de recompensa é retirado de alguém a título de punição.
Assim, o sistema punitivo, na medida em que inibe os atos criminosos, há de gerar um certo volume de bem-estar a ser distribuído sob a forma de recompensa. A ausência de bem é comparativamente um mal e a ausência de mal é comparativamente um bem. No sistema de punição e recompensa se distribui, sob a forma de recompensa, o bem economizado no exercício de atos punitivos.
A distribuição de punições deve ser frugal, posto que a punição é sofrimento e agrega mal-estar ao total já existente na sociedade. Assim, também, não se deve ser menos rigoroso na distribuição de recompensas. Tanto a punição, quanto a recompensa têm um caráter maléfico. A punição é um mal àquele ao qual é aplicada. A recompensa é um mal àquele a cujas custas ela é aplicada. Toda recompensa tem sempre um custo em termos de taxas ou impostos ou contribuição dos cidadãos. Ademais há que se considerar, ainda, que a quantia recolhida pelo poder público sob a forma de taxas, impostos, contribuições não tem um valor maléfico sobre aquele em quem incide que seja diretamente proporcional ao valor benéfico que produz àquele que posteriormente a recebe. Isto devido ao caráter assimétrico dos resultados quando certas quantidades de benefícios poupados e que tiveram um custo em termos de sofrimento são distribuídos sob a forma de recompensas ou benefícios a serem desfrutados por alguém em função de seu merecimento. Isto é, um quanto de bem estar retirado de alguém a título de punição não produz o mesmo tanto de bem estar àquele que é atribuído em termos de recompensa. O que isso tudo parece revelar é que há todo um sistema de regras que controlam a economia da distribuição de penas e recompensas.



BIBLIOGRAFIA GERAL


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14 comentários:

  1. Caros alunos,
    Após ler o texto, elabore um breve comentário e envie para postagem.

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  2. De certa forma, fomos criados com a metodologia da punição para atos contrários às regras empregadas pela sociedade. O método punitivo, encontra-se inserido em ambientes, os quais, por finalidade deveriam extinguí-lo, a exemplo, as instituições educacionais. É de importância ressaltar, que a técnica da punição não necessáriamente deve conter violência. Pela religião, vimos que no ato da criação, as duas primeiras criaturas da terra foram punidas por seu criador. Não houve uma discussão, a possibilidade de redenção nesse caso, não foi se quer cogitada, ou seja, Adão e Eva foram punidos mesmo ante um possível acordo. Mais tarde aconteceria o mesmo com Caim. Talvez o cerne da questão, seja cultural, por isso só engendramos de fato as possibilidades punitivas. Claro que ao consideramos o sistema penal brasileiro, vimos que a "intencidade" das punições são abruptas, pois o ladrão de bombons pode ter a mesma punição, ou até menor, que a de um servidor público corrupto.
    Foucault trabalhou a relação entre poder e vigilância. Lembrva como citado acima que a metodologia do ato de vigiar e punir ainda são largamente encontrados em instituições de ensino e empresas estatais, como: prisões, hospitais e departamentos burocráticos. Assim, Foucault busca o entendimento por meio de um estudo científico e documentado, sobre a evolução histórica da legislação penal e respectivos métodos coercitivos e punitivos, adotados pelo poder público na repressão da delinqüência. Métodos que vão desde a violência física até instituições correcionais.
    Nos extremos, o cerceamento vai ao internamento, punir e vigiar integra-se como apelo para resolver conflitos.
    Pertinente, expõe Foucalt:
    Entre as razões invocadas para o internamento estão: desordem, devassidão, embriaguez, vagabundagem, violência dos pais para com os filhos, loucura. Os arquivos mostram que a coisa pública identifica-se com a ordem familiar e a família torna-se assunto público. Essa privação da liberdade estabelece uma relação mais próxima do rei com a gente humilde pela confissão de um segredo (Foucault, 1982: 83).
    Em uma ampla reflexão, não é difícil concordamos com o expresso no texto acima ao dizer "Tanto a punição, quanto a recompensa têm um caráter maléfico. A punição é um mal àquele ao qual é aplicada. A recompensa é um mal àquele a cujas custas ela é aplicada". Para Foucault, vigiar poderia evitar a utilização dessa punição.
    A recompensa, essa não citada por Foucault, a princípio objetiva um reconhecimento por um ato, seja ele um esforço, atitude ou uma boa ação, por isso, não parece ser o caminho certo para evitar a punição. Tal ato parece servir bem aos animais irracionais. O sistema jurídico deve sim, amenizar ou redistribuir os atos punitivos e não gerir cargas diferenciadas no sistema. É notório que há no sistema, regras que controlam a economia da distribuição de penas e recompensas, contudo, esse sistema já está calcificado e testado, desde o fim da guilhotina.

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  3. De certa forma, fomos criados com a metodologia da punição para atos contrários às regras empregadas pela sociedade. O método punitivo, encontra-se inserido em ambientes, os quais, por finalidade deveriam extinguí-lo, a exemplo, as instituições educacionais. É de importância ressaltar, que a técnica da punição não necessáriamente deve conter violência. Pela religião, vimos que no ato da criação, as duas primeiras criaturas da terra foram punidas por seu criador. Não houve uma discussão, a possibilidade de redenção nesse caso, não foi se quer cogitada, ou seja, Adão e Eva foram punidos mesmo ante um possível acordo. Mais tarde aconteceria o mesmo com Caim. Talvez o cerne da questão, seja cultural, por isso só engendramos de fato as possibilidades punitivas. Claro que ao consideramos o sistema penal brasileiro, vimos que a "intencidade" das punições são abruptas, pois o ladrão de bombons pode ter a mesma punição, ou até menor, que a de um servidor público corrupto.
    Foucault trabalhou a relação entre poder e vigilância. Lembrva como citado acima que a metodologia do ato de vigiar e punir ainda são largamente encontrados em instituições de ensino e empresas estatais, como: prisões, hospitais e departamentos burocráticos. Assim, Foucault busca o entendimento por meio de um estudo científico e documentado, sobre a evolução histórica da legislação penal e respectivos métodos coercitivos e punitivos, adotados pelo poder público na repressão da delinqüência. Métodos que vão desde a violência física até instituições correcionais.
    Nos extremos, o cerceamento vai ao internamento, punir e vigiar integra-se como apelo para resolver conflitos.
    Pertinente, expõe Foucalt:
    Entre as razões invocadas para o internamento estão: desordem, devassidão, embriaguez, vagabundagem, violência dos pais para com os filhos, loucura. Os arquivos mostram que a coisa pública identifica-se com a ordem familiar e a família torna-se assunto público. Essa privação da liberdade estabelece uma relação mais próxima do rei com a gente humilde pela confissão de um segredo (Foucault, 1982: 83).
    Em uma ampla reflexão, não é difícil concordamos com o expresso no texto acima ao dizer "Tanto a punição, quanto a recompensa têm um caráter maléfico. A punição é um mal àquele ao qual é aplicada. A recompensa é um mal àquele a cujas custas ela é aplicada". Para Foucault, vigiar poderia evitar a utilização dessa punição.
    A recompensa, essa não citada por Foucault, a princípio objetiva um reconhecimento por um ato, seja ele um esforço, atitude ou uma boa ação, por isso, não parece ser o caminho certo para evitar a punição. Tal ato parece servir bem aos animais irracionais. O sistema jurídico deve sim, amenizar ou redistribuir os atos punitivos e não gerir cargas diferenciadas no sistema. É notório que há no sistema, regras que controlam a economia da distribuição de penas e recompensas, contudo, esse sistema já está calcificado e testado, desde o fim da guilhotina.

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  4. Percebe-se pela leitura que o Direito Penal só tutela bens penalmente relevantes, i. e., apenas quando se configurar uma autêntica violação ao bem jurídico é que se recorrerá ao jus puniendi. Implica em que seja o Direito Penal e a privação da liberdade, a última alternativa para a tutela de bens e para o controle social. O bem jurídico penalmente protegido há que ter seus contornos bem definidos, sendo certo, escrito e estrito, funcionando como limite à ampla criminalização de condutas. Assim, penalmente relevante será a conduta que atente contra a ordem social e a moral pública. Neste sentido “o discurso do Direito Penal é irracional” (Dr.Peluso). Sabendo-se que o ser humano é agressivo e em todos os grupos sociais existem mecanismos de controle dos comportamentos agressivos não valorizados pelo grupo, visto que a organização social estimula e mantém diferentes modalidades de violência, podemos questionar em que sentido se encontra a legitimidade do sistema jurídico em relação às regras de comportamento? No sistema punitivo, eu penso. Ora, “para alguns as punições são instrumentos de eficácia garantida no controle social, para outros, as punições só são racionalmente justificáveis se for possível demonstrar que os resultados obtidos com sua utilização, de fato, maximizam a tutela eficaz dos bens jurídicos fundamentais para a convivência social” (Prof. Dr. Luis Alberto Peluso). Concluo, então, que quando falamos em uma ética da recompensa devemos entender que a dignidade humana deve estar assegurada mesmo quando o indivíduo cumpre prisão carcerária, pelo que, também podemos falar sobre as Recompensas, como mais um fator que pode ser utilizado para influenciar as atitudes das pessoas, se bem que, para Tomás de Aquino, o próprio agir bem e retamente já constitui a recompensa por si mesmo, além disso, para ele não seria plenamente virtuoso agir bem apenas em vista de um premio e sim pela intrínseca bondade das ações virtuosas. Por fim, é preciso verificar os pontos de vista, já que “o enfoque utilitarista da punição envolve uma análise de custo-benefício e a recompensa consiste e dar ao premiado os meios ou recursos para que o agente possa escolher e praticar as ações que lhe trazem prazer” (Prof. Dr. Luis Alberto Peluso).

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  5. Comento a questão partindo de uma realidade prática vivenciada na educação. Mais precisamente vou focar na política de progressão continuada adotada no Estado de São Paulo, que acabou se tornando um mecanismo de "promoção automática". A retenção é encarada por essa legislação como uma punição, uma arma da qual se vale o professor para punir o aluno. Desta forma, seja qual for o seu rendimento ou aproveitamento, o aluno é automaticamente transferido para a série seguinte, não sendo dessa forma "punido" pel seu aprendizado insatisfatório.
    Onde estaria, neste caso, a "ética da recompensa" que premia o bom rendimento? O aluno que apresenta um excelente rendimento não terá nenhum benefício e irá para a série seguinte como o outro que nenhum esforço realizou. Dessa forma, se retira uma dita "punição" ao mesmo tempo que também se retira o estímulo para a prática do "bem". Além disso, o aluno que não obteve rendimento satisfatório nao tem a oportunidade de cursar novamente a série, indo para uma série seguinte já em defasagem, tendo enormes dificuldades de acompanhar o restante da turma.
    Muitas linhas poderiam ser escritas sobre este assunto, mas, para não alongar os pormenores acredito que devemos olhar com cuidado para essa questão. De pronto, é muito fácil acatar o argumento que não se pode garantir um comportamento "correto" com base em punições, bem como o argumento de São Tomás de Aquino onde é defendido que a prática do bem não deve exigir recompensas. No entanto, quando lidamos com as situações reais, práticas, nada é tão simples como parece. Acredito que a ética nas ações deve ser assegurada, se o caminho não é um sistema punitivo, há de se pensar em algum mecanismo que possa então garantir a prática do "bem", que funcione de fato. Substituir uma sistema normativo por outro desde que este consiga trazer resultados ainda melhores.

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  6. É bastante difícil pensar em uma sociedade que recompense as boas ações dos indivíduos, ao invés de punir suas más ações quanto vivemos em uma sociedade que preza as punições em detrimento das recompensas.
    Em nossa sociedade aprendemos que devemos praticar o bem, sem esperar nenhum benefício por isso. E também nossas ações ruins são punidas.
    Aproveito-me do exemplo trazido pela Karen, do sistema educacional público estadual de São Paulo.
    Eu vejo que o aluno bom, que cumpriu com seus deveres, é punido pois continuará acompanhado do aluno que não cumpriu com suas obrigações, e que, na maioria da vezes, atrapalhou aquele que desejava ser um bom aluno.
    E, enquanto isso, o mal aluno é beneficiado, pois, apesar de não cumprir com suas tarefas, é promovido.

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  7. Admitindo a possibilidade de haver um sistema funcional capaz de premiar as pessoas pela correção de seus atos, acredito que, associada ao método coercitivo, essa fórmula pudesse ter algum êxito no aperfeiçoamento da forma de se lidar com os conflitos humanos. Parece conveniente usar a racionalidade do desejo de ser recompensado e a da rejeição de sofrer uma punição como maneira de manter as condutas dentro de limites toleráveis ou desejáveis.

    Minha desconfiança quanto a um modelo dessa natureza reside na motivação a partir da qual se define pela premiação ou punição. A aplicação de uma ou outra coisa implica o que?

    Hoje, não vejo clareza nas sentenças punitivas. Não posso dizer se elas visam a retirar indivíduos infratores do convívio social, ou a “reeducá-los”, ou se a servir de exemplo inibidor, ou se a tudo isso, ou se a um pouco de cada um desses objetivos.

    No caso do sistema recompensatório, poderiam surgir dúvidas da mesma ordem, ou seja, o “bônus” serviria para incentivar a prática de boas ações, ou a inexistência de más, para se eleger um exemplo de conduta correta, ou tudo isso, ou se um pouco de cada e em que medida.

    Acredito que essa obscuridade seja fator importante que dificulta uma reflexão mais profunda do que se poderia desejar de um sistema penal ou premial.

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  8. ’A punição é um mal àquele ao qual é aplicada. A recompensa é um mal àquele a cujas custas ela é aplicada.” A frase me chamou a atenção e me fez refletir da seguinte forma:
    Antes de punir ou recompensar ações, há a necessidade de pensar-se na Formação do Ser. Em uma pesquisa de opinião disponível no site http://www.brasilpontoaponto.org.br/, pode-se observar os itens mais votados, em resposta à pergunta: “O que deveria mudar no Brasil para a sua vida melhorar de verdade?” Os itens mais votados em todos os Estados do Brasil foram: “Violência” (Tocantins), “Valores” (São Paulo) e “Educação” (outros Estados); temas estes, que estão extremamente ligados à Formação do Cidadão. Ações preventivas na Formação dos cidadãos minimizariam questões, que envolvem soluções para promover uma sociedade mais justa.

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  9. É necessário um sistema normativo, mesmo sabendo que ele é plausível de erros. Pois, vivemos em sociedade, e as regras devem existir, para pelo menos tentar controlar as ações humanas. Sabendo que a punição pode mudar as ações humanas, e que essas ações podem ser inibidas se associadas a punição, devemos pensar qual seria a forma mais adequada de se punir, se é que existe, já que envolve de acordo com os utilitaristas, uma análise de custo-benefício. Pensando na recompensa, se por um lado, obviamente, nos remete a idéia de benefício, por outro pode trazer prejuízos, que podem ser interpretados como punição para outros. Enfim, se o sistema normativo apresentasse apenas benefícios estaria resolvido o problema da punição e da recompensa. Infelizmente, estamos longe de um sistema eficaz.

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  10. o texto dá um salto do campo da ética para o do direito e traz problemas novos por conta disso. Em ética, a discussão se dá em torno de como distinguir o bom do mau, e supõe-se que as pessoas deveria querer seguir sempre o que é bom.
    No entanto, o direito tem que lidar com dois problemas: 1 - Embora a Ética seja fundamentada no debate sobre o que é bom, sem atingir uma explicação definitiva para a questão, o direito deve agir com base em definições de quais comportamentos devem ser incentivados e, principalmente, quais devem ser evitados para o convívio social. 2 - Apesar de haver regras escritas (o direito) e não escritas (normas sociais, costumes, etc.) estabelecendo comportamentos que devem ser evitados, sempre haverá pessoas que terão esses comportamentos, podendo prejudicar os demais. Diante disso, quais mecanismos podem ser utilizados para garantir que os bons comportamentos sejam incentivados e os maus comportamentos evitados? A forma mais generalizada é a punição dos comportamentos a ser evitados. No entanto, ao fazê-lo, o Estado com frequência usa de métodos que não são desejáveis socialmente, como a violência física ou psicológica e o controle do corpo alheio. É uma contradição quase insustentável e que vem sofrendo cada vez mais críticas.
    Outra forma, que pode ser combinada com os sistemas de punição, é a recompensa pelas boas ações. Contudo, mesmo esses métodos são estranhos à ética, pois, as pessoas deveriam buscar o bem pelo bem, não pode outras recompensas.

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  11. Para ilustrar o assunto, a ética da recompensa, usarei exemplos discutidos pelo Prof. Peluso durante as suas aulas. O primeiro: Como você justifica do ponto de vista utilitarista estar fazendo este curso? Como suposições, “se temos “algo” a buscar, estarmos lá nos enche de satisfação, e o resultado dessa conta é que, pelo fato de sentirmos um enorme prazer ( “plus”), o custo do sofrimento é pequeno”. Essa maneira de “olhar” para a moralidade das condutas humanas a partir das suas consequências, em que o indivíduo busca maximizar o (seu) bem estar, o seu prazer, fundamenta-se na teoria utilitarista (racional). Do ponto de vista de Jeremy Bentham, ser racional é agir de acordo com o que é previsível em nossas ações.
    O outro exemplo, dentro da reflexão utilitarista, é sobre o sistema prisional e a Teoria Ética da Recompensa, de Bentham. Dela, Peluso resgata a proposta de que o Direito não seja apenas um sistema punitivo, mas, também, um sistema de premiação para as condutas. A punição como mecanismo de controle sobre as ações das pessoas, agrega mais sofrimento, e, para Bentham, aumentar o sofrimento, é imoral. Entende-se, assim, que o sofrimento deva ser tratado como um mal, pois causa sofrimento à sociedade, e ao condenado.
    A impunidade também gera sofrimento. Aplicando critérios as várias condutas humanas surgem as normas como mecanismos de controle sobre as pessoas. Se, brevemente, considerarmos que, 1- a punição agrega mais sofrimento ao final das ações; 2- a pena (na sua quase totalidade) serve para garantir a tranquilidade social; e 3- a ocorrência de desrespeito às leis que regulam a dignidade humana; surgem questionamentos, como: Afinal do que o sistema punitivo prisional está dando conta? O que é e como se aplica o Direito Penal? Em conformidade com Bentham, como fica?
    Para Bentham, a força da lei está no balanço dos custos e benefícios feitos pelo legislador e não na punição determinada em lei. Pelo princípio da utilidade, as ações seriam reguladas pela busca do prazer e da fuga do sofrimento; esta, uma atitude racional e uma regra do agir moral. Então, a ética (no sentido geral) e o princípio de utilidade se “harmonizam”. Se uma ação gere mais dor que prazer, deve ser descartada. Não são as ações boas ou más em si mesmas, mas as suas consequências.

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  12. Um sistema legislativo premial realmente seria fantástico, mas um sistema premial sofreria o mesmo problema de um sistema legislativo penal, na medida em que a racionalidade do executante da ação indesejada também faz as contas da quantidade de prazer e dor que podem ser proporcionadas por suas ações, e em ambos o sistemas uma sérias de ações ilegais continuaria sendo vantajosas para uma série de indivíduos.

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  13. A ética preza a propagação do bem e prazer às pessoas e em igual nível ; e se há um custo, que ele não ultrapasse a quantidade de bem e prazer que a ação inicial gerou. Então, mesmo considerando que a “a recompensa é um mal àquele a cujas custas ela é aplicada”, qual foi a satisfação que gerou ao recompensado e qual foi o resultado da ação que este praticou que o diferenciou a ponto de ser recompensado? Ele voltará a praticar a mesma ação? Quais as chances da reprodução de sua ação? Enfim, são perguntas que devem cercear a decisão pela recompensa. O exemplo dado pela colega Karen, para mim, também pode ser visto como sendo a recompensa para quem foi bom aluno que no próximo ano ele não terá dificuldades para se formar e seu colega sim, terá que estudar em dobro, fazer recuperação, etc. (considerando apenas o lado do ‘bom’ aluno que não foi recompensado anteriormente e que ainda viu seu colega, dito ‘mal’ aluno, ser aprovado como ele; e não do ponto de vista político de que o Estado não está cumprindo seu papel de ofertar educação com qualidade e garantir a alfabetização dos cidadãos). No entanto, acredito que a consideração feita pelo colega Hugo seja bastante provável, levando a reflexão, a meu ver, de que as ações éticas precisam ser uma vontade do indivíduo livre de qualquer interesse; e desta forma, o caminho para aqueles que não optam por esta maneira de condução das ações, seja a punição através da privação da liberdade.

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  14. O sistema jurídico-punitivo foi alvo de pesquisa e crítica por Michel Foucault, em especial na obra "Vigiar e punir". Segundo aí afirma, o objetivo velado desse sistema é garantir a educação do corpo para que o homem seja, num só tempo, "dócil" e "útil" para a sociedade. Nesse sistema as institucionais tendem a suprimir os direitos individuais, atuando como um dispositivo que se utiliza do próprio homem para se manter. Considerando o princípio utilitarista, de que ética é uma forma de distribuição equitativa dos direitos concernidos dos cidadãos tendo em visto o equilíbrio do nível de satisfação social, não permanece o homem sob o mesmo risco foucaultiano, de apenas apenas representar papéis que lhes são socialmente distribuídos?

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